Era uma vez... acorrentados no próprio chão

Autor: Tche Voni
Era uma vez uma aldeia de pacatos nativos, indígenas agricultores, que trabalhavam para seu sustento, cuidavam da família e gostavam de sua terra; Trabalhavam muito, mas eram felizes, pois tinham ali tudo que necessitavam. Então, um dia, chegou um povo estrangeiro montado a cavalo, segurando armas na mão, e disseram que aquela vila de nativos seria deles, e que a terra seria o seu chão. Os homens ficaram revoltados, alguns pelearam, outros fugiram. Suas mulheres foram violentadas e suas crianças escravizadas. Levaram seu alimento e derramaram seu sangue que, entranhado na terra, vermelho secou.
O povo amedrontado da vila aceitou que os estrangeiros ficassem, pois prometeram outra cultura que não massacrasse. Resistir seria pior. Assim seguiram os anos e vieram outras gerações. O povo da vila, agora, tinha uma estrutura melhor, algumas construções de pedra, usavam os cavalos do inimigo para arar a terra e aprenderam a cantar, a falar com Deus e voltaram a ter uma vida mais feliz.
Mas, novamente, chegaram os estrangeiros em seus cavalos com armas nas mãos. Só que desta vez não atacaram o povo. Com os governantes, ficaram por ali, comeram a comida que plantaram os agricultores, o melhor gado, beberam e até se enroscaram com as chinas. Mas, subitamente , anunciaram que os governantes haviam trocado as terras do povo nativo. Que deveriam partir, ir para o estrangeiro, para outra terra!
O céu ficou nublado, a mãe terra brotou do sangue guerreiro derramado dos pacatos na luta por sua terra. Então, os agricultores fizeram como o primeiro invasor: montaram a cavalo e pegaram nas armas. Pelearam, estava feita a guerra contra os dois impérios estrangeiros ao mesmo tempo. Dizendo que aquela terra tinha dono, sucumbiram com a morte, tingiram a terra de vermelho e os que sobreviveram voltaram a escravidão. A terra deixou de ser fértil e o estrangeiro foi embora levando nosso pão.
Desta terra sangrenta, vermelha, isolada, brotou uma nova raça. Um ser guacho da mãe terra. Livre, nômade, valente, de caráter e cruel, que vivia sobre o cavalo, caçava, andava, cantava, bebia, peleava pela sobrevivência brotando da pampa.
Os poucos estrangeiros que o conheceram chamaram-no de bárbaro, mas ele, em defesa, manteve sua terra que já não tinha mais cerca, parte verde, parte vermelha e um amarelado de outono. Se fez dono. Poucos viviam por ali, solito na imensidão da pampa, nascia feliz desde que era guri!
Então, chegaram novos estrangeiros, mas estes eram diferentes. Enfiaram as mãos e os pés na terra, também abandonados, juntos com o nômade, criaram a vila próspera novamente, de onde o gaúcho não se sentia só e compartilhava a terra com estrangeiros, que pela primeira vez a amavam. Deste amor brotava o pão e foram chegando, dedilhando um acordeão, que junto à guitarra crioula virava festa. E a vila prosperou.
Mas que barbaridade! Lá vêm os homens do estrangeiro com armas na mão. Disseram que estavam ali para garantir a terra. Queriam desenhar um mapa e logo a vila não pertencia mais aos agricultores gaúchos. De tudo que dali brotasse, parte seria do estrangeiro. Começaram levando o milho, um cavalo, depois o boi. O agricultor ficou triste, juntou muita carne e salgou, e o estrangeiro deixou o sal, mas sua carne levou.
O tempo ficou feio, os gaúchos disseram que não. Que a carne era deles, que fazendo [o quê? o charque?] o negro rachou a mão. Então, o estrangeiro acorrentou o negro, levou o boi, a carne e o milho e deixou apenas o sal!
Mas daí, a peleia ficou séria, a gauchada amiga se juntou, e da loja dos homens de bem saiu a revolução. Expulsaram os governantes estrangeiros e disseram "daqui ninguém tira nosso o pão". Estava feita a guerra novamente neste rincão!
O mal já não andava a cavalo. Eram muitos soldados estrangeiros pelo chão. Invadiam as casas de uniforme, matavam, roubavam, violentavam nossas mulheres e nos davam tiros de canhão.
Então, a mão forte do gaúcho, do índio, do negro, do gaúcho estrangeiro, sobre o cavalo se fez guerreiro. Com a lança, atacou o mal bem no peito, derramando o sangue do estrangeiro no chão. De um lado um império gigante, do outro o gaúcho agricultor com a arma na mão! Da terra brotou a liberdade, juntando, fundiu-se o gaúcho no pano sagrado com o verde, o vermelho,o amarelo. Da terra, um grito subiu aos céus, da mão do Netto, uma espada dez anos peleando pelo nosso chão.
Então o império gigante foi sufocando. Tomou nossa terra e o gaúcho resistindo, morreu lutando pelo seu chão... Então, o império estrangeiro fez paz na guerra, prometeu devolver a terra e disse que dela poderíamos retirar nosso pão, que ali brotaria uma nova paz, que os gaúchos eram irmãos e seriam uma outra nação.
Sem as armas nos acorrentaram e montaram cercas em nosso chão. Desenharam seu mapa, dizendo que era deles o nosso pão. Acorrentaram o negro, maltrataram o índio e para o gaúcho começou a escravidão.
Muitos anos vieram, esquecida a guerra ficou. Da falsa paz brotou a ilusão de que aquele mapa estrangeiro era sim o nosso chão. Que o chão sagrado não era gaúcho até hoje amargamos uma estrangeira escravidão.
Tu que és contra nossa liberdade, te coloca na pele desta irmandade, sem teto, sem chão. Põe tuas crias no meio da rua, violenta tua mulher, teu coração. Não vou contar de novo, nasço e morro, mas levanto por um lenço sagrado, tingido pelo sangue derramado. Estou de pé reivindicando novamente minha verdadeira nação!
Nação que se fez com o povo, que pra ti, pátria estrangeira, só interessa o soldo. Com nosso suor pagando tua permissão para continuamos existindo escravos na nossa própria terra!


Gaúchos acorrentados em uma cadeira de plástico no nosso próprio chão!
Créditos da imagem e direitos de uso: Tche Voni Farrapo
Arte: Francine Fornazier Amaral

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